A cena se repete em conselhos e salas de reunião: de um lado, a promessa da inovação: a Inteligência Artificial nos seus múltiplos aspectos, a nuvem como solução para a agilidade, a digitalização como base da sobrevivência. De outro, a cibersegurança, muitas vezes relegada ao papel de “custo inevitável”. Não nos enganemos: essa divisão é um falso dilema. É uma armadilha, e as empresas brasileiras estão pisando nela com uma frequência alarmante.
De acordo com o estudo Estado da Inovação e IA, da Dell Technologies, 83% das empresas brasileiras confessam a dificuldade em equilibrar essa balança. E o mais preocupante? Não é por falta de percepção do perigo, já que 93% reconhecem a importância da cibersegurança. Isso não é uma questão de ignorância, é uma falha estratégica na forma como estamos integrando essas duas forças. É como construir um carro de corrida superpotente, mas equipá-lo com freios de bicicleta, e ainda se surpreender quando ele sai da pista.
A Ilusão da Velocidade
Por que chegamos a esse ponto? A resposta reside principalmente em uma cultura que prioriza a velocidade em detrimento da resiliência. A pressão por entregar funcionalidades, por adotar a “próxima grande coisa” (leia-se, IA) a qualquer custo, tem levado a decisões que, na melhor das hipóteses, são ingênuas e, na pior, catastróficas.
Não basta “ter IA”. É preciso questionar: que tipo de IA? Como ela foi treinada? Que dados ela consome? Que tipo de ataque ela pode sofrer e, mais importante, causar? Quando 59% dos executivos admitem o temor de que a IA aumente a vulnerabilidade, não estão apenas expressando uma preocupação genérica. Estão ecoando a intuição de que a implementação desenfreada, sem uma governança de segurança desde a concepção, transforma uma ferramenta poderosa em uma porta aberta para o inferno digital. Pensem nos riscos de data poisoning que comprometem a integridade de modelos, ou nos ataques adversarial que subvertem decisões críticas. O perigo não é hipotético; é a nova realidade.
E os motivos para essa falha de orquestração? Os clássicos: falta de visibilidade (um calvário para qualquer SOC que se preze), orçamentos apertados que forçam escolhas temerárias e a eterna busca por “parceiros” que entendam a complexidade do cenário, e não apenas ofereçam mais uma caixa. Não se trata apenas de colocar mais firewalls ou antivírus; é sobre a inteligência por trás da defesa, a capacidade de prever, de reagir com precisão cirúrgica.
Segurança Não é Freio. É o Motor da Resiliência Digital
É chegada a hora de enterrar a ideia de que a cibersegurança é um entrave. Ela é, na verdade, o alicerce sobre o qual toda a inovação digital deve ser construída. Mais do que isso, é o motor que impulsiona a capacidade de uma organização de inovar de forma sustentável, confiável e, acima de tudo, rentável.
O que as empresas realmente precisam não é de mais alertas, mas de visibilidade contextualizada. O SOC tradicional, muitas vezes afogado em um mar de dados irrelevantes e alertas genéricos, não consegue mais entregar o que o negócio precisa. Precisamos da capacidade de correlacionar eventos de segurança com o verdadeiro impacto nos processos de negócio. Essa é a visão que diferencia a gestão de incidentes da gestão estratégica de risco.
É por isso que a Gestão Contínua de Exposição a Ameaças (CTEM) não é um luxo, mas uma necessidade. Não podemos esperar por auditorias anuais ou testes de penetração pontuais para descobrir nossas vulnerabilidades. O CTEM é o ritmo constante que mantém a organização em estado de prontidão, identificando e mitigando falhas de forma iterativa, antes que se tornem oportunidades para adversários. É a inteligência proativa que permite que a inovação avance sem carregar o fardo de vulnerabilidades desconhecidas.
E quanto à IA? Ela precisa se tornar nossa aliada mais potente. Soluções que utilizam AIOps, orquestração e automação transformam o volume caótico de telemetria em inteligência acionável, permitindo a detecção de anomalias sutis e a resposta automatizada a incidentes em escala. Isso não substitui o analista humano, mas o eleva, liberando-o da fadiga de alertas para focar na estratégia, na caça a ameaças e na inovação da defesa. É a simbiose perfeita entre a mente humana e a velocidade da máquina.
Ações Inadiáveis
Para transformar esse dilema em uma vantagem competitiva, é necessário agir agora, com uma visão clara e pragmática:
Integrar para Conhecer, Orquestrar para Agir: A fragmentação de ferramentas e dados é um convite ao desastre. Precisamos de plataformas que ofereçam uma visão unificada e orquestrada de todo o ambiente – do endpoint à nuvem, da rede aos dados sensíveis. A implementação de estratégias como o XDR (Extended Detection and Response) é fundamental para isso. Não se trata apenas de coletar dados, mas de correlacioná-los e automatizar respostas, tornando a detecção mais avançada e a mitigação mais eficiente.
Defesa em Profundidade, do Zero à Nuvem: A segurança precisa ser granular, aplicando princípios de Zero Trust em tudo, desde a microsegmentação de redes industriais (OT Security) e corporativas (Network Security), à proteção dos acessos privilegiados (PAM).
Invista em Inteligência, Não Apenas em Ferramentas: Ferramentas sem inteligência são apenas hardware caro. A verdadeira vantagem reside na capacidade de interpretar o cenário de ameaças, definir casos de uso de segurança alinhados ao negócio e construir playbooks de resposta eficazes. Isso requer expertise, seja através da formação contínua de equipes internas ou da parceria estratégica com modelos de gestão de segurança que seguem o conceito de Fusion Center, combinando acuracidade na monitoração, orquestração de sistemas e uma expertise que vai além da ferramenta, entregando o contexto e a inteligência de mercado necessários para otimizar e direcionar os esforços.
Consciência é a Primeira Linha de Defesa: Nenhuma tecnologia se sustenta se o elo humano for frágil. Programas contínuos de conscientização e treinamento em cibersegurança são essenciais, transformando cada colaborador em um sensor ativo na rede de defesa da organização.
Cibersegurança: Uma Imposição Estratégica, Não uma Escolha
Os tempos em que a cibersegurança era uma consideração secundária, ou um departamento isolado, ficaram para trás. O futuro já nos alcançou, e com ele a imposição de que inovação e segurança caminhem juntas, de mãos dadas, como os dois lados inseparáveis de uma mesma moeda.
As empresas que falharem em abraçar essa realidade não estarão apenas “em risco”; elas ampliarão suas próprias fragilidades, comprometendo sua continuidade e a confiança que levaram anos para construir.
A cibersegurança, quando bem implementada, é o motor da inovação, o guardião da reputação e o alicerce da resiliência digital. A hora de construir essa fundação é agora.